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Recifenses gostam de se gabar das maravilhas de Pernambuco. Tem um ego grande… Mas, além de terra do carnaval, frevo, maracatu, terra que deu ao Brasil Chico Science e toda a galera do Mangue Beat, que fez os primeiros movimentos de independência, que produziu intelectuais da envergadura de Gilberto Freyre, leva o título também de ser a cidade onde se produziu a primeira cerveja no Brasil (e das Américas!). Sim! A certidão de nascimento da história da cerveja no Brasil está em Recife! E vamos a história:

No século XVII os holandeses ocuparam boa parte do nordeste brasileiro. O mapa abaixo mostra o tamanho da ocupação:

Aproveitando-se de uma complicada situação entre Espanha e Portugal na época, os holandeses tiveram bastante sucesso na empreitada de dominar a produção de açúcar no nordeste brasileiro. Um negócio bastante lucrativo, que em parte, ajudou a financiar o chamado “Século de Ouro na Holanda”.

Estiveram por lá, entre vitórias e derrotas em alguns lugares, por em torno de 24 anos. Mas foi durante o governo de Maurício de Nassau (1637-1644) que ocorreram as transformações mais profundas da ocupação. Nassau (que na verdade era alemão e contratado pela empresa holandesa Companhia das Índias Ocidentais- WIC) esteve como governador do Recife por sete anos. Durante seu governo a cidade floresceu. Nassau, um humanista de crença, mas um homem ambicioso. Construiu ruas, casas, um palácio, a primeira sinagoga e o primeiro observatório das américas, construiu a primeira ponte do Recife. Também vieram uma comitiva de artistas e cientistas, que foram responsáveis pelas primeiras imagens do Brasil e pelos primeiros estudos da natureza brasileira e de seus habitantes. Nassau trouxe também, em 1640, um cara chamado Dirck Dicx, um cervejeiro holandês da cidade de Haarlem, um dos principais polos de produção de cerveja na Holanda.

O período da ocupação holandesa, ainda que se gerasse muita riqueza com o açúcar, não pode ser considerado um período de fartura. Na verdade, os perrengues eram grandes. Fome, crises de abastecimentos foram constantes durantes esses anos do Brasil Holandês. Os motivos dessa situação eram muitos… Primeiro, os holandeses que se aventuraram pelas terras brasileiras, ao contrário dos portugueses, nunca se adaptaram ao local. Os portugueses, muito rapidamente, aprenderam com os indígenas como plantar, produzir, e comer a partir dos frutos da terra. Comiam mandioca, milho, peixes e frutas locais sem problemas.

Os holandeses não… Nunca tiveram esta capacidade de se adaptar. Praticamente toda alimentação holandesa vinha de navio. Segundo relatos, chegaram no Recife, ervilhas, amêndoas, azeite, queijo, carnes defumadas, e pasmem: salmão e arenque secos! As bebidas também vinham no navio: vinho e cerveja (uma pena que não se deliciaram com a cachaça ou com a variedade imensa de fermentados indígenas).

Além disso, todo palmo de terra era usado para plantar cana. Ninguém tinha uma rocinha, criava uns bichos para comer e essas coisas tão fundamentais. O lema era produzir açúcar ao máximo e lucrar bastante. Sem se preocupar como e em que condições as pessoas que viviam na terra iriam sobreviver.

Resultado: nesses anos todos, a opulência que imaginamos do Brasil holandês é muito mais um mito que uma verdade. Os caras passavam fome aqui. E passavam fome feio…

Ninguém sabe ao certo porque Dirk Dicx tenha vindo para o Brasil. O que sabemos é que ele era filho do dono da ‘t Scheepje, uma das mais tradicionais cervejarias de Haarlem, e que trabalhou um tempo na Halve Maen’t, outra célebre cervejaria da região (onde, provavelmente fez seu treinamento como cervejeiro). Dicx também tinha a patente de capitão, e por isto foi retratado nas imagens do pintor holandês Frans Hals:

Em 1640 ele vende a sua casa em Haarlem e embarca para o Brasil. Porque ele veio para cá, ninguém sabe. Sabemos apenas que ele veio numa esquadra três anos após a chegada de Nassau. Em outubro de 1640, instala no palácio La Fonteine, na região da Capunga (hoje Graças) uma pequena fábrica de cerveja, que duraria até 1644, ano da partida de Nassau. O palácio La Fonteine era usado como casa de descanso de Nassau. Era chamado também de aldeia Nassau, devido a proximidade com uma aldeia indígena. Ficava as margens do Capiberibe (de onde, provavelmente, vinha a agua da cerveja). E mais. Dicx pagava pelo espaço à WIC, para operar os equipamentos. Ou seja… A primeira cervejaria em solo brasileira ainda era cigana!

Qual breja Dicx produziu? Este também é um mistério. Mas podemos inferir algumas coisas. Primeiro, Dicx era um cervejeiro experiente. Praticamente nasceu numa cervejaria. Na Holanda, no século XVII se produzia uma infinidade de estilos que hoje foram perdidos. Quem imagina que a cerveja holandesa daquele tempo fosse uma lager de inspiração alemã, está enganado. As lagers só tomaram conta da Holanda no século XIX, praticamente exterminando uma rica tradição cervejeira que assim como a Bélgica, usava e abusava de especiarias, temperos, ervas aromáticas, raízes, açúcar e todo o tipo de adjunto (aliás, não nos esquecemos que até 1830, quando o país Bélgica passou a existir, era quase tudo território holandês). Além disso, uma infinidade de gruits eram produzidas na Holanda. Depois da Lei da Pureza, de 1516, os alemães já não podiam fazer cervejas com adjuntos. Os holandeses se tronaram os principais exportadores de cervejas que fugiam da lei da pureza. Ingredientes como anis, cardamomo, semente de coentro, alcaçuz, gagel (uma plantinha aromática que dava muito na Holanda, até hoje é usada para tratar inflamações de garganta), eram usados sem preconceito nos Países Baixos.

Alguns estilos foram registrados e esses registros estão preservados em arquivos públicos. A cervejaria Jopen, uma das crafts mais populares da Holanda, reeditou duas receitas históricas, bastante comuns no século XVII: uma cerveja de trigo lupulada (hopen bier), registrada em 1501 e a Koyt (este estilo de cerveja está contido no Guia do Brewer’s Association). Aliás, grande parte do portfólio da Jopen é composto de várias tentativas de reeditar cervejas históricas holandesas.

Fazer chegar os insumos necessários para fabricação de cerveja era uma tarefa muito complicada durante a ocupação holandesa. Mal e mal chegava comida… Talvez tenha sido este o motivo pelo qual a cervejaria de Dicx não tivesse um sucesso retumbante. Talvez Dicx tenha usado açúcar? Provavelmente… Daí o adjetivo dado a cerveja feita em Recife: uma “zwaar” bier (zwaar significa forte, pesada). Dicx sabia como tirar “leite de pedra”, isto e, como adaptar os insumos disponíveis e principalmente, como preparar uma cerveja com vários tipos de especiarias. Ele produziu a cerveja no La Fonteine até 1644, ano que Nassau deixa o Brasil. Após isso, Dirck Dicx se alista para trabalhar na Companhia das Índias Orientais, onde a veio a falecer em 1654 a bordo de um navio.

O que aconteceu com o equipamento usado por ele também permanece um mistério. Talvez tenha sido levado de volta à Holanda, talvez tenha sido desmembrado e usado para outros fins. O fato que infelizmente Dirck Dicx não deixou sucessores. E a história da cerveja no Brasil permaneceu adormecida por mais 160 anos, sendo retomada após a chegada da família Real em 1808. Mas que o título de primeira cerveja das Américas é de Recife, ah… Isto ninguém tira!

Juntando os fatos, temos um mosto de aventura, coragem e brasilidade. Dicx teve coragem de vender tudo na Holanda, até então um dos centros mais importantes do mundo, para atravessar o atlântico e fazer cerveja no Brasil. Se aventurou a tocar a primeira cervejaria das Américas, era um cervejeiro cigano e teve o gingado de adaptar suas receitas ao que ele tinha na mão (cervejinha brasileira com açúcar mascavo?). Desta mistura fermentou o primeiro capítulo da história da cerveja no Brasil (e nas Américas). Pena que ela se perdeu, não houve tempo para a maturação… Mas pelo menos tentamos resgatar esta recita bem tupiniquim!

Texto escrito por Tatiana Rotolo e Eduardo Marcusso (Sommelier de Cerveja e Cervejeiros Caseiros)
Post original: http://cervejaefilosofia.blogspot.com.br/2018/03/a-cerveja-de-nassau_2.html

By Henrique Carnevalli

Viciado em música, Pirado na fase psicodélica do Ronnie Von e Corinthiano. Lupúlomaníaco e Beer Sommelier formado no ICB.

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